A vida arrancou-me de mim, como um jardineiro insensato que extirpa do jardim a flor mais bela.
A vida subtraiu-me de mim, como um torturador que se apossa da alma de sua vítima, inoculando nela o vírus mortal do desespero.
Fraturado, perdido de mim, vago fantasmagoricamente através das horas, sem rosto, passado ou futuro, corpo sem alma, anjo caído, sonho vencido.
A vida, a pequena vida, vampirizou minha existência. Sugou o meu melhor: minha faculdade de imaginar e produzir o novo. Com as bestiais presas, sorveu minha força vital produzindo mais um soldado para seu exército de bestas-feras, autômatos e dementes.
Os tortuosos caminhos da vida me levaram para longe de mim, de minha chama, de minhas virtudes, de minha essência; levaram-me para longe de onde eu queria estar, enraizar, frutificar e frondosamente existir.
A vida, a pequena vida, arrancou de mim minhas possibilidades, meu porvir. No vácuo que se abriu plantou suas acanhadas certezas, as mediocridades e os cataclismos que lhe são peculiares. Eu que era espírito, e não carne; luz, e não sombra; sonho, e não ambição; brisa, e não ventania; flor, e não pedra; afago, e não golpe. Eu que era todo rima, melodia, hoje sou contabilista de tristezas, guardador de desilusões.
Eu morri da vida e suas urgências, contradições, constrangimentos, perseguições. A vida triunfou sobre mim, a pequena vida, a vida-clichê, a vida tornada dogma, a vida que todo mundo espera de cada um.
E cá estou eu parindo simulacros de mim mesmo.
Ai que saudades eu tenho de mim, do que eu era.