sexta-feira, 26 de setembro de 2014

EU E DEUS, por Tádzio Nanan



deus me foi negado! deus me foi negado! Por um líder carismático com suprema autoridade? Não! Por uma sociedade opressiva que proibiu a religião? Também não!
deus me foi negado por mim mesmo, pela minha singular arquitetura corpóreo-mental, por cada célula ativa e cada neurônio vibrante neste “cadáver adiado”. deus foi subtraído de mim por mim mesmo, pela minha ancestralidade materialista, por meus genes ateus. Nada na minha inteligência recorre a deus, na verdade, sente desprezo por tal ideia, por seus seguidores também, rebanho de incautos e dementes. Cada pensamento meu é dedicado ao acaso, ele é mais crível e mesmo mais belo que uma suposta intencionalidade universal que redundaria na vida consciente.
Só que a questão é outra: meu drama íntimo existe porque minha sensibilidade pede por Ele, clama por Sua companhia, Seu perdão, Seu sistema moral, que oferecem ordem e sentido à vida (mas a vida não tem ordem nem sentido, tolinho!).
Minha materialidade – meu corpo, minha mente, os átomos hereges que em mim se agitam, o sangue irreligioso que me corre nas veias, jamais me deixarão ser arrebatado por ele. Meu corpo e minha mente são insensíveis, inflexíveis, rejeitam fantasias e delírios. Preferem levar-me ao desespero, ou à loucura, se for o caso, a me ceder o conforto e a serenidade da fé. A fé é um luxo que não está à minha disposição!
Assim, vivo uma guerra íntima, entre a eternidade da alma e o instante que fulge para nunca mais. Parte minha anseia por deus, parte minha gargalha dele, e neste corte profundo e doloroso as sequelas são confusão sensória e amargura. Eu queria deus, mas deus me soa absurdo e ridículo!
Meu coração pede por religião, senão pode ceder à impiedade, ao niilismo. Minha sensibilidade pede por deus ou poderá enregelar-se na indiferença. Mas minha inteligência mordaz afirma, de forma peremptória e tonitruante: “pó e sombras, tolinho, nada mais, nada de mais; som e fúria, tolinho, nada mais, nada de mais!”.
Triste daquele cuja mente prefere arriscar jogá-lo ao precipício a ofertar-lhe o reconfortante abraço da fé!
Eu queria crer, mas deus, a mim, é impossível!

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

QUATRO POEMAS, por Tádzio Nanan

O HOMEM QUE NÃO ESTAVA LÁ

a casa parece enorme; a cada passo, se estendem os cômodos, se multiplicam os metros, e os vazios se aceleram, como num universo particular; a solidão infinda-se, dilacerando-me lentamente, humilhando minha humanidade; uma imensidão de impossibilidades de afeto, diálogo, amor, esperança
falo fingindo a presença de outra pessoa, falo para ouvir-me, para lembrar que sou gente; a solidão é um sol que dá vida, expande as capacidades imanentes, abre os olhos para uma singular visão das coisas, mas, exagerada, entorpece e exaure, resseca o coração, confunde a mente, limita o espírito
percorro um milhão de quilômetros de pensamentos no espaço de um metro quadrado, quisera percorrer um milhão de passos sem nada a pensar, fruindo o momento
solidão tumular, silêncio cortante, pensamentos tortuosos
existo realmente ou apenas vestígio de algo extinto, sombra do passado? eles existem ou são reflexos de alguma coisa, não a coisa, o pó da coisa, o rastro fugidio da coisa? e se existimos, o fato de que tudo será extinto e esquecido não nos faz mortos e esquecidos desde já, como fantasmas errantes? alívio nada ficar registrado (que assim permitam as leis da física)
bebo água, sem água a gente morre, sem gente por perto morremos também, queria beber gente todo dia, como se fosse água, queria respirar gente como se fosse ar, respirar-se é bom, mas insuficiente, vai-nos intoxicando, precisamos de pontos de vista diferentes, de dialética e oxitocina
entro em meu quarto, meu palco e minha tumba, por onde andam meus sonhos e esperanças? murcharam como eu através das décadas; de timidez ando perdendo a vida, me disseram, não que a vida se importe, não que alguém se importe, eu deveria me importar, mas alquebrado demais para me importar; ouvindo música baixinho, para não incomodar ninguém, passando despercebido mais um dia, um alegre e festivo, talvez pela minha falta; ouvindo música baixinho, e dançando com alguém imaginário, o amor dos meus 15 anos
a casa parece enorme
uma ausência de tudo


LUTAR

Em um mundo brutalmente cindido pela desigualdade
O homem não pode restringir-se ao sonho particular:
Chefiar isso ou aquilo, curtir e gozar; urge participar
Dos assuntos públicos, organizar e lutar com vontade

Em um mundo por massacrante injustiça marcado
Deve-se vestir o uniforme, desfraldar a bandeira, ir à guerra
Contra vetusta ideia que nos assombra, deprecia e aferra:
O todos contra todos; oposto do paraíso sonhado

O homem comum percebe o caos e clama por um ideal
Se padecem os irmãos, como pode descansar à noite?
Não pode sorrir quando em tantos a vida dói como açoite
E essa desfaçatez de se dizer a iniquidade algo normal

Mas, se cada um fizer sua parte, não calar, contra-atacar
Se cada grito e cada lágrima puderem ser vistos e escutados
Mais e mais homens e mulheres se erguerão como soldados
Contra o mal: a atroz injustiça, a desigualdade secular



SERVIR

Servir a si mesmo – que delícia, é um direito natural
Da condição humana, o primeiro e fundamental motivo
Que advém da inestimável e rara consciência de estar vivo
E ser dono dos frutos do próprio esforço laboral

Servir a si mesmo e, desta forma, servir aos demais
Ofereço aos outros um futuro melhor ao pensar em mim
Os interesses diversos se conciliam para operar este fim:
Afluência material, bem-estar, felicidade, paz
Servir aos demais – que oportunidade, é divina lei
Da religião e filosofia, o ensinamento mais sublime
É aquele sopro de ar benfazejo que a todos redime
E no benevolente serviço alcançamos o posto de reis

Servir aos demais e, desta forma, servir a si mesmo
Uma sacrossanta energia me toma, alentando o coração
Socorrendo o próximo, Ele também me estende Sua mão
Me ergue, me guia, me salva de caminhar a esmo


NO CENTENÁRIO DE MEUS AVÔS – AMÉRICO BARREIRA E LAURO MACIEL SEVERIANO, UMA SINGELA HOMENAGEM DO NETO TÁDZIO NANAN

Américo, cidadão destemido, agente da história, apaixonado
Pela vida e pela humanidade, pelo futuro e o debate de ideias
Muitos matizes: intelectual, ativista, boêmio, ser multifacetado
Com a palavra, trilhou seu caminho de lutas e arrebatou plateias

Entregou-se às questões de seu tempo com a inteligência privilegiada
Já com o coração comunista, distribuiu cuidados, doçuras, carinhos
E assim tornou-se uma saudade e uma ideia sempre relembrada:
Uma vida plena é aquela na qual se percorre todos os caminhos

Sua casa, alegre e acolhedora, foi por anos nosso parque de diversão
Quando vôzinho chegando repartia os chocolates, a festa começava
Os primos todos reunidos, tagarelando em vívida confraternização
Ah, nossa infância, saudosa infância, que a vicissitude não maltratava

Lauro Maciel fez-se a si mesmo, como agem os audazes e valentes
Seus instrumentos de trabalho: o esforço, a palavra, a inteligência
Foi jornalista, mas brilhou como advogado dos mais competentes
Exercendo o ofício como serviço, com honestidade e proficiência

Pai zeloso, contra as intempéries da vida, foi refúgio e abrigo
Mente curiosa e resoluta, temperamento afável e constante
Por isso, onde andou fez amigos – dele não se conheceu inimigo
Pequenino no tamanho, na vontade e no caráter, um gigante

Leu sobre tudo e nas páginas dos livros sagazes observações ia anotando
Sua biblioteca e escritório, para mim, jovem leitor, eram templos de sabedoria
Mas não se engane, frequentemente vôzinho Lauro era visto se deliciando
Em Maranguape, no Maguari, em carnavais de transbordante alegria

O OLHAR DELE, por Tádzio Nanan



Ele tinha um olhar vago, triste, que transbordava dor e aflição, como se a vida lhe devesse algo, como se as pessoas lhe devessem algo. Um olhar de bicho recém-nascido, pedindo socorro, mãe, lar, carinho, aconchego. Também se via no olhar dele uma raiva dissimulada, uma fúria contida pela boa-fé da juventude, como se ele esperasse mais do mundo, como se tivesse sido traído pela sorte, esquecido por Deus, a quem, mesmo assim, sempre recorria em preces, crédulo.
Além disso, vi outra coisa em seu olhar: mágoa e decepção. Uma mágoa não direcionada, difusa, de a vida ser o que ela é, dura, escassa, implacável, pelo menos, para ele. E uma decepção doída, dele consigo mesmo, por não conseguir corresponder às exigências da vida, por deixar seus sonhos esvaírem como um punhado de areia entre os dedos, e decepção com os outros também, por olharem para ele sem o enxergarem, por passarem por ele sem o sentirem, por não o ouvirem, por o esquecerem em vida. “Eu sou gente, preciso de cuidados, de oportunidades!”.
O olhar triste, magoado talvez estivesse sedimentado na percepção de que aquela era a sua realidade e que ele não poderia mudá-la facilmente, que os dados já haviam sido lançados, e eles lhe desfavoreceram. A raiva advinha da não aceitação desta realidade, deste dia a dia sombrio, árido, sem perspectiva. Ele não podia admitir ser um joguete da sorte. Ele queria gritar contra isso, poder viver, poder sonhar, ser gente na plenitude de suas capacidades. Ser gente do tamanho dos seus sonhos.
Mas naquele olhar também ardia um sol. Havia um brilho secreto, escondido entre as brumas que lá passavam. Um brilho que dizia que aquele rapaz iria lutar, esforçar-se até o fim, até o limite de suas possibilidades para existir, não morrer; para ser homem, não bicho; para ser gente, não estatística do governo; para ser feliz, não vítima, ou pior, algoz! Como milhões de outros jovens, ele tinha recebido da vida uma viagem dura, repleta de tropeços e desvios, cheia de óbices, desassossego, infelicidades. Mas a alma dele era maior que tudo isso, ele tinha uma luz interior, uma vontade inabalável, um sonho de vencedor, uma expectativa imorredoura de felicidade. Ele era assim, da mesma forma que milhões de outros jovens mundo afora golpeados pela mão furibunda do destino. Apesar de o mundo ser o que é, apesar da amarga realidade, ele ia escolher a vida e a felicidade, ele ia viver e ser feliz, apesar das circunstâncias!