sexta-feira, 8 de junho de 2012
UM CONTO DA MEIA-NOITE - por Tádzio Nanan
O
suor escorria abundantemente do rosto afogueado. As mãos pequeninas
doloridíssimas pelo esforço continuado. Do nada, veio-lhe à mente
o momento em que se encontrou pela primeira vez com Jorge, um
extraordinário acaso: ela voltava ao banheiro feminino porque
esquecera o batom por lá, e ele, absorvido pelos negócios da
família, confundiu os banheiros, literalmente tropeçando nela. A
química foi tão avassaladora que ele, mais tarde, ainda no teatro,
convidou-a para sair, e ela enrubesceu, gaguejou mas topou na hora.
Dia seguinte, estavam jantando num dos melhores restaurantes da
cidade. Total identidade: gostavam do mesmo tipo de comida,
apreciavam os mesmos diretores de cinema, curtiam jazz e música
clássica, adoravam viajar, ambos de famílias
tradicionalíssimas, com dinheiro aos borbotões... Ela parou um
momento o que estava fazendo. Parou para pensar, pois desperdiçava
tempo, bem valiosíssimo naquele instante. Decidiu-se por outro
equipamento para agilizar o serviço. Levantou-se, dirigiu-se ao
quartinho onde se guardava todo tipo de material, e achou o que
buscava. Voltando aos afazeres, continuou a relembrar de bons
momentos vividos. Jorge era realmente um baita dum macho! Fizera ela
gozar logo de cara, na primeira trepada! Mexeu a cabeça, sozinha,
concordando que eram feitos um para o outro, ela e o marido, o Jorge.
Ele com aquela corpulência toda, que tanto a atraía, aquele pênis
grande, que ela adorava olhar e sentir entre as pernas. Adorava
trepar com ele, mais que tudo, essa era a verdade. E o amava também,
muito, mais que a tudo no mundo, outra grande verdade. Mais a vida
deles não se resumia só a sexo. Eram também a personificação do
casal moderno: sociáveis, cheios de vida, sempre passeando, indo a
museus, parques, eventos, restaurantes, assistindo a filmes,
visitando os amigos... As costas a estavam matando. Parou para gemer
de dor. Perdera momentaneamente a força na mão direita, a esquerda
toda lambuzada, escorregadia. As lágrimas escorriam-lhe
abundantemente das maças do rosto, mas ela não estava arrependida,
não! Faria tudo de novo, mais mil vezes, se fosse o caso. Nela
ninguém passava a perna, não! Ela era uma rainha, e rainhas merecem
tudo, todas as alegrias e gentilezas do mundo. E sendo rainha, também
podia tudo, podia fazer o que lhe desse na veneta, o mundo era um
lugar onde simplesmente perambulavam seus súditos... No dia-a-dia,
Jorge era ótimo, lembrou. Viviam uma vida tranquila e movimentada,
prazerosa e atarefada; tinha negócios e diversão, sexo e amizade;
futilidades de toda ordem e trabalho social. Jorge era único. O amor
da vida dela, o marido dela, o melhor amante que tivera. Não seria
exagero afirmar-se que ela morreria por ele, que mataria por ele.
A paixão que Márcia sentia era desse nível... Estava quase terminado.
Ela sentou-se no chão e urinou nas calças de cansada que estava.
Tinha de pensar na próxima etapa. Para isso, ia ter de rodar um bom
tempo com o carro pela cidade afora, madrugada adentro. Não tinha
medo. Do que poderia ter medo? Do que mais? Meia-horinha a mais de
esforço... Pronto! Acabou! Foi ao banheiro. Olhou-se no espelho, era
bonita, gostosa, os seios ainda durinhos, o bumbum empinado, redondo,
não entendeu o porquê daquilo acontecer. Estava a um tantinho assim
de desmaiar, a mente a um ponto de se estilhaçar. Pediu perdão a
Deus, mas sem muita fé: nunca crera muito Nele. Veio um acesso de
cinismo e criatividade: resolveu pedir a Ele que a ajudasse nesta
empreitada, afinal de contas não fora ela a culpada, não mesmo, ela
era apenas uma vítima das circunstâncias, macabras
circunstâncias... Tomou um banho, limpou-se toda das manchas e
nódoas, e das lascas de carne. Ficou linda e cheirosa como sempre
fora. Uma dama da sociedade! Já passava da meia-noite. Era hora de
finalizar o que começara. Desceu pelo elevador de serviço. Tudo
certo. Com as costas doendo que nem facada, abriu a mala do carro e
pôs os embrulhos lá, vários e vários deles. Na hora de fechar,
não conseguiu. Claro, um pedaço da perna do Jorge. Um maldito
pedaço da maldita perna do Jorge. Os restos imundos daquele animal
grotesco, daquele pilantra traidor, daquele porco desleal que a
traíra tantas e tantas vezes...
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