sábado, 16 de junho de 2012

UM CONTO DA MEIA-NOITE - por Tádzio Nanan


O despertador o acordou cedo, como de costume. Levantou-se sem demora, cheio de ânimo e desespero: sua missão era medonha e, ao mesmo tempo, memorável. Banhou-se e perfumou-se como se fosse receber os favores da mulher amada. Mas a dama que hoje ele teria entre os braços era outra... Vestiu-se, foi à padaria, depois tomou café com a família, conversando sobre variados assuntos, política sobretudo, seu assunto preferido. Em sua casa todos eram apaixonados por política, mais que isso, eram apaixonados pela vida, de uma paixão comprometida, ruidosa, abrasadora, que os levaram a abraçar fervorosamente posicionamentos ideológicos radicais, posicionamentos estes que muito assustavam os outros, seus familiares e amigos, acostumados à vidinhas mornas, insípidas, assustadiças. Depois do café, foi à sede do partido, sua segunda casa. Lá encontrou-se com um grupo grande de camaradas e ficaram discutindo as recentes questões políticas, nacionais e internacionais. O grupo era formado por jovens muito inteligentes e capacitados, a maioria deles fazendo parte de uma esquerda mais centrista, que ainda acredita no jogo democrático e na atuação do Estado junto à economia de mercado para produzir o desenvolvimento. Mas uma outra parte do grupo era de radicais, no bom e no mau sentido do termo, gente linha dura, que não transige com nada, gente feita de certezas inquebrantáveis, e certezas inquebrantáveis podem até acabar com o mundo...ou salvá-lo. O nosso personagem era um radical. Tinha convicções ardentes, compromissos irrevogáveis com seu país, com a humanidade, com os mais fracos e desprotegidos. Era o anti-nazista: sociedade humana, para ele, é aquele forma de se viver na qual ninguém fica para trás, não se abandona quem quer que seja por motivo nenhum. Neste particular, era um seguidor de Jesus. Não sei se acreditava no Cristo, mas certamente acreditava nos ensinamentos do Nazareno, e de uma forma original fundia cristianismo com marxismo. Mas não pense nele como um pacifista, um desses sujeitos que crêem que tudo se resolverá por si só, com o fim da mais-valia e a implosão do Capital, segundo previu Marx. Ele tinha a forte convicção de que só era possível transformar o mundo mediante a violência, a violência da revolução. De que outra forma poder-se-ia fazer revoluções, senão matando os inimigos dela? De que outra forma poder-se-ia transformar radicalmente a sociedade, revolvendo seus fundamentos, para transformá-la numa outra coisa, senão matando, matando aos milhões? De que outra forma poder-se-ia privar os poderosos de sua influência, destituir os ricos de sua afluência material senão metendo-os na cadeia? Não era por maldade sua, ele não era mau, nem odiava os ricos e poderosos só porque eram ricos e poderosos, ele apenas amava num grau infinitamente maior os miseráveis, os pobres, os esquecidos, os ultrajados. Matar era apenas a consequência óbvia de um processo revolucionário, que tem de tirar de poucos aquilo que pertence a todos. “Você acha que estes poucos, que detêm o poder político, o poder econômico, o poder das armas, vão abrir mão de sua vidinha infantil e mimada em prol da massa ignara e desapossada?”, perguntava ele. Como eu disse, ele amava Jesus, o Jesus histórico, mas estava muito mais inclinado a agir como um “Che”, pegando em armas, e pagando com a vida, se fosse o caso. Não tinha medo de morrer, nem achava pecado matar, se matar não fosse um ato de vaidade, cobiça ou ira. No esquema dos seus propósitos elevados matar era um ato de amor à humanidade e de heróico desprendimento. Sob seu ponto de vista, matar era o nosso passaporte para o futuro, não para qualquer futuro, mas para o futuro por todos nós almejado. No entanto, tinha a noção de que o povo estava muito distante de fazer uma revolução. E tinha a noção também de que ele não tinha o direito de utilizar os afetos e frustrações desse povo, que ele tanto amava, como massa de manobra, como faziam os picaretas que ele odiava, pois agir de uma forma populista, fazendo o Estado tutelar a população, era só um meio de adiar indefinidamente a tão sonhada e necessária revolução. A revolução podia estar longe, mas ele seria o estopim de uma sequência inaudita de acontecimentos que levariam o Brasil a ela! Este era o seu plano.
À tarde, deixou-se levar, emocionado, por Mozart, Bach, Chopin; depois, irritadiço e transtornado, ouviu Coltrane e Mingus. Praticou a guitarra - estava ficando bom nisso, e boxe. Leu notícias na internet, corrigiu seus textos pela última vez e os enviou a dezenas de contatos.
Ele já tinha decidido há algum tempo o que ia fazer logo mais. Lutou contra a ideia nas primeiras semanas, lutou com todas os átomos do seu corpo e com todos os neurônios da sua inteligência. Mas, no final, venceu um pequeno monólogo que ficava repercutindo em sua consciência: você vai dar o exemplo, um exemplo imortal, um exemplo quase tão poderoso quanto o do grande “Che”, um exemplo para todos aqueles que ainda acreditam na possibilidade de transformar o mundo – necessidade imperiosa; você dará uma injeção de ânimo nos corações e mentes do seu amado país, mas também do mundo inteiro. Será noticiado ao mundo inteiro, e os descrentes vão ver que não estamos brincando, que não se pode brincar com o desespero alheio, com a necessidade alheia. Que a miséria é o pior pecado, o pior crime; que a fome é o pior pecado, o pior crime; que a desigualdade é o pior pecado, o pior crime; que a discriminação é o pior pecado, o pior crime; que a exploração do homem pelo homem é o pior pecado, o pior crime; que a guerra é o pior pecado, o pior crime; que 20% da humanidade não pode ter para seu livre usufruto 80% da riqueza financeira e dos recursos naturais do planeta.
Bem municiado ideologicamente, e com a certeza de que Deus, se existisse, o perdoaria, e o salvaria de sofrimentos infinitos, vestiu-se mais uma vez, agora pela última vez. Pôs seu casaco de couro, para disfarçar o que estava preso a seu corpo e partiu para o centro da cidade. O que ele faria nas próximas horas era dar um grito, um estrondoso grito, e este grito o mundo inteiro ouviria, em condoída reflexão e silêncio. O momento era propício: ele nunca tivera tanta convicção e seu país nunca fora tão maltratado, tão desmoralizado por suas imundas e degeneradas elites. Reinava um cinismo absoluto, um egoísmo que estava conduzindo o Brasil à beira do precipício, à uma guerra civil, mas era uma guerra onde só os filhos dos pobres morriam. Se era pra ser guerra, ele iniciaria uma guerra justa: uma guerra dos despossuídos contra os senhores do Capital. Ele já tinha decidido: iria lançar a primeira bomba, apenas a primeira de um feroz ataque das forças revolucionárias, pensava ele, para que enfim o brasileiro tivesse seu país de novo para si, para que enfim o Brasil tivesse seu povo de novo para si. Ele estava prestes a lançar uma bomba e ela ia machucar muita gente, mas também ia incentivar, encorajar muitos jovens corações e mentes a pensar, a agir, a se organizar, a exigir seus direitos, a lutar pelo seu povo, pelo seu país, pelo mundo, pela humanidade.
A noite já tinha caído. A praça estava lotada. Mais de 1 milhão de pessoas reunidas. Era um evento contra a corrupção que corroía o país, mas tinha também discursos contra a desigualdade social e denuncia dos crimes do capitalismo. Ele fora com um grupo de amigos, mas separou-se deles propositadamente, para que seu plano tivesse mais chances de operar como ele planejara. Dirigiu-se à frente do palco onde discursavam políticos, jornalistas, intelectuais. Havia repórteres e câmeras de televisão cobrindo o evento, do seu país e de países de todos os quadrantes do mundo. Estava na hora. Ele abriu o casaco e calmamente retirou de debaixo dele um objeto, o que era?, abriu-o e derramou seu conteúdo, encharcou-se todo, depois pôs a mão no bolso, tirou algo, o que era? um isqueiro!, parou alguns segundos, se despedindo, acendeu o isqueiro e ateou fogo sobre si mesmo. Morreu carbonizado. Foi o primeiro caso no Brasil: um ativista político que ateava fogo em seu próprio corpo, como forma de protesto. Para não parecer apenas um ato de loucura e desespero, ele enviou mais de cem páginas de análise política e econômica sobre o Brasil e sobre o mundo, com centenas de dados estatísticos e referências a pensadores e teorias, para diversos amigos, professores, estações de rádio e sítios de televisões e revistas na internet. Ele queria que todos entedessem bem os motivos de um rapaz de 25 anos, promissor e apaixonado, ter se imolado! Imolou-se porque não podia mais suportar a torpeza, a degradação, o opróbrio que tomavam conta da civilização humana!

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