Ele entra no recinto apressado, quase tropeça, dá bom-dia à atendente com um gesto esquisito, com o qual ela já está acostumada, e pede vênia para ir ao banheiro. Tranca-se lá dentro, junta a necessária coragem e mira o espelho: maldição!, lá está ela, com seus vinte e poucos anos, suas louras madeixas encaracoladas escorrendo sobre os ombros, os olhos verdes felinos, grandes e assustados, os fartos atributos femininos. Ele a ama deveras – afinal, é muito linda!, e a odeia mortalmente, desejaria poder matá-la, meter-lhe as mãos na garganta e asfixiá-la à morte! De onde ela vem, meu Deus? De onde ela vem? Por que está fazendo isso com ele, essa tortura, esse assombro quotidiano?
Sai do banheiro em desalinho, mas o ciente médico logo o convida a entrar. Apertam-se as mãos, ele com aquele aperto frouxo de sempre, e senta-se no sofá, o corpo todo a tremer, a suar em bicas, o coração a bater descompassadamente.
- Vamos
lá, meu querido. O que você tem para mim, hoje?
- Como
eu tentei lhe dizer ao telefone, doutor, há dias que a vejo. A
vejo, sem parar. Em tudo que reflete, eu vejo a maldita imagem dela.
E mais: não consigo sacar ela da minha mente, vejo cada pormenor do
rosto dela, cada detalhe do corpo dela, sinto ela respirando sobre
mim, ouço a voz dela dentro da minha cabeça, ela fez de mim sua
residência, e isso está me matando, me matando! Estou
completamente desesperado, a ponto de fazer besteira, doutor, ouça
o que lhe digo! Tô perdendo a razão...
- Você
está tomando a medicação que eu prescrevi?
- Terminou
há dias, doutor, e eu ainda não arranjei o dinheiro para comprar
mais, o dinheiro é pouco, o senhor sabe. Mas vou comprar, logo,
logo.
- Você
não acha que a falta da medicação está relacionado com o que
você está me relatando?
- Sei
lá, doutor! Deve estar... O que sei com certeza é que minha vida
está desmoronando, não consigo dormir, minha mente está em cacos,
minha identidade está dia-a-dia mais obscura, estou à beira de um
colapso. É pressão demais sobre minha débil estrutura psíquica...
Doutor, a minha tese inicial era a de invocar o sobrenatural para
explicar isso tudo, um espírito que me seguia, tentando me dizer
alguma coisa, me passar um recado do além, de alguém, ou talvez
fosse simplesmente um espírito raivoso que estivesse tentando se
vingar de mim. Mas eu nunca fiz mal a ninguém, a mulher alguma,
sempre as tratei muito bem, sempre simpatizei com elas, com as
causas delas, e, além disso, não acredito nem um pouco nessa
sandice, o tal de sobrenatural, nem em Deus eu acredito, muito menos
em alma penada...
- Faz
muito bem em descrer de tudo isso. Mas, diga-me, você não se
questiona do por quê de ver a imagem de uma mulher no espelho, de
ouvir a voz dessa mulher na sua cabeça?
- Ora,
doutor, não é essa exatamente a questão!? Não é exatamente isso
que me está afligindo, me tornando um alucinado, um desvairado, um
delirante!? Por que cargas d'água eu vejo uma mulher refletida onde
deveria estar a minha imagem. Logo eu que sempre me pensei tão
másculo, tão bem resolvido com minha sexualidade! Como é que de
repente eu me torno uma mulher, quer dizer, como é que eu passo a
me enxergar como uma mulher, assim, do nada? Tem outra ideia que me
ocorreu, além da do sobrenatural: talvez meu cérebro esteja
tentando me convencer de que sou homossexual, que eu reprimi a minha
verdadeira sexualidade ao longo da vida, ou pior que isso, que sou
transexual e devo me tornar uma mulher, mudar de sexo, fazer a
operação mesmo, que minha alma é mais feminina que masculina, e
que eu devo fazer meu corpo ficar em sintonia com minha psique. O
que eu também acho uma grande loucura porque não existe varão
mais macho do que eu nesta cidade...
- Bem,
é uma hipótese, né?, mas não sei se é bem esse o caso...
Permita-me perguntar um pouco mais sobre você, Antônio. Vamos
tentar conhecê-lo melhor. Você poderia me dizer como foi a sua
infância?
- Minha
infância? Foi ótima. Nenhum trauma. Amor dos pais, amigos,
passeios...
- Sim,
mas dê mais alguns detalhes sobre ela. Você cresceu aqui mesmo,
gostava de futebol, quem era seu melhor amigo?
- Nossa,
doutor, já tenho pra lá de 40 anos. Não sei se consigo lembrar-me
de todos esses detalhes da infância...
- Ora,
meu caro, da infância todo mundo recorda-se. E você tem 40 e
poucos, não 90 anos! Vamos lá, faça uma forcinha, ajude-me a
ajudá-lo...
- Deixa
eu ver... Hummm... Doutor, não está vindo nada, coisa alguma à
minha memória. Não estou conseguindo acessar nenhuma lembrança!
Que coisa estranha, doutor, estranhíssima, apavorante!
- Tente
um pouco mais...
- Nada,
doutor! Coisa alguma me vem à mente. Será que eu estou com algum
problema neurológico, uma doença neurodegenerativa, um tumor? Tô
ficando em pânico, doutor...
(começa a lacrimejar)
- Calma!
Calma! Estou aqui e vou lhe ajudar! Não, não, estas doenças que
você citou não tem nada que ver com o seu caso. Eu sei que é
doloroso, que é complicado, mas vamos lá, tente lembrar das suas
brincadeiras de menino, das coisas que você gostava de fazer, das
garotas da rua...
- Doutor,
o senhor não está entendendo, o senhor só está conseguindo
aumentar meu mal-estar, eu não consigo lembrar de nada, como se eu
nunca tivesse existido, é tudo um imenso vazio, um vazio glacial...
Me vem agora uma sensação de enlouquecimento...
(levanta-se e começa a andar pela sala, desbaratinado)
- Sente-se.
Vai dar tudo certo. Vamos mais devagar, então. Você lembra, por
exemplo, da sua primeira namorada?
- Namorada?
Hummm... Não, doutor. Tudo que me vem à mente são nomes e rostos
de homens, do Marcelo, do Henrique, do Rodrigo... Doutor, será que
eu já me envolvi sexualmente com homens? Tô passando mal, tô
querendo vomitar doutor... Me ajuda... Acho que vou apagar...
Antônio desmaia. O Doutor o socorre, deita-o no sofá. Antônio vai recobrando a consciência lentamente. Bebe um copo de água, e engole uma pílula que o médico lhe dá. Ficam em silêncio por alguns instantes.
- Nossa,
doutor, o que estou fazendo aqui?
- Não
lembra de nada?
- Não,
não consigo lembrar... Tive uma crise? Foi muito severa? Não minta
pra mim, doutor...
- Foi
mais aguda, sim...
- Quem
foi, doutor?
- O
Antônio. A personalidade dominante. As outras são secundárias e
esporádicas.
- Estou
exausta, doutor, com uma dor de cabeça insuportável. Meu corpo
está todo doído. Não consigo raciocinar, estou com medo de
enlouquecer de uma vez por todas.
- Calma.
Aos poucos, você se recupera. Vou lhe indicar um novo medicamento,
muito bom, muito mais eficaz, os testes estão comprovando, você
vai ver. Também podemos tentar uma nova terapia que está surgindo
nos Estados Unidos.
- Eu
já quase não consigo lembrar de qualquer coisa, doutor. Minha
memória de curto prazo desapareceu, a de longo prazo é confusa,
enevoada... Isto que me aconteceu hoje tem acontecido muito amiúde?
- Sim,
você tem passado por momentos mais críticos nos últimos tempos.
Eu associo isso ao estresse destes últimos anos.
- Quantos
anos, doutor?
- Os
últimos cinco anos.
- Eu
venho tendo essas crises já faz cinco anos? Porque na minha cabeça
parece sempre que é a primeiríssima vez, é sempre um espanto
novo, uma agonia sempre renovada, um medo mortal, muito medo mesmo,
e depois, a vergonha, muita vergonha...
- É
verdade, Andréia, é assim mesmo, é a doença, você tem de
entender, e ter paciência...
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